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FRAGMENTOS DA HISTÓRIA DO MUCURI (parte 4)

  • profademircomunica
  • 24 de mar. de 2021
  • 5 min de leitura



Naknenuk, a origem dos nanuquenses




Trouxe-me espanto ao ler um site de turismo que fazia um breve histórico sobre o Vale do Mucuri, descrevendo os povos originários da região como grupos violentos, “ferozes” e que praticavam o “canibalismo”. Impressiona como as informações construídas nos anos de mil e oitocentos, quando no Brasil colonial o governo português decretou guerra aos pejorativamente chamados botocudos, ainda são replicadas em pleno século XXI.



Os grupos indígenas que viveram no nordeste de Minas Gerais no século XIX eram diversos e com vivências extremamente complexas. Um aspecto dificultador para identificar as características dos indígenas foi a visão distorcida e simplista dos colonos que ocupavam a região do Mucuri.


De modo geral, animalizava-os, considerando como povos bárbaros, traiçoeiros, vingativos e que adotavam práticas canibalescas. Uma parte em função dos permanentes conflitos entre os próprios grupos botocudos, outra parte pela tendência colonizadora a perceber o outro com características violentas. Acabaram por estimular no imaginário da época a visão dos nativos do Mucuri como canibais. A imagem embrutecedora do chamado botocudo tinha também o objetivo de impor os valores civilizatórios, reforço do ideal de desenvolvimento e progresso do século XIX.


Havia para os colonizadores a divisão, simplista e dicotômica, entre índios mansos (Naknenuk) e ferozes/canibais (Giporok). Naknenuk significa o “não da terra”, provavelmente pela presença recente no Mucuri de novos indígenas, consequência dos deslocamento desse grupo vindos fugidos da ocupação estabelecida na região do Rio Doce. Já Giporok tem o significado de perverso, hostil à presença de outros povos. Se os Naknenuk adotaram a política de rendição, os Giporok resistiram, ainda que desiguais, à dominação.


Na realidade, o mito de práticas antropofágicas responsabilizadas aos botocudos era consequência da própria brutalidade colonizadora em função das práticas dominadoras e do terror em decorrência dessa violência, pois a antropofagia não pertencia aos rituais dos nativos do Mucuri.



Corroborou muito com a imagem do nativo a belicosidade presente em sua cosmologia e organização social. Havia como pertencente ao universo social botocudo a força do simbólico em detrimento da materialidade e praticidade dos valores ocidentais oitocentistas.



São marcantes no universo sociocosmológico botocudo a liderança política e a força sobrenatural. O líder botocudo é uma pessoa carregada dessas forças sobrenaturais, o que dava a ele a capacidade de prever doenças transmitidas de forma transcendental pelos inimigos, podendo causar, em caso extremo, a morte se atingido pela “flecha mágica rival”. Um grupo sentia-se protegido se tivesse a liderança de um xamã forte com capacidade de blindar o grupo de flechas invisíveis e mortais.



Entendendo ser a morte resultado de um assassinato orientado espiritualmente por feitiços, a reação contra inimigo eram ataques reais. Com o objetivo de eliminar aqueles que foram, de forma sobrenatural, responsáveis pela morte dos membros de sua aldeia, os ataques eram disparados contra a tribo rival, que tinham também poderes xamânicos.



Para os botocudos, as forças sobrenaturais ganhavam maior vigor se os indígenas estivessem em locais considerados por eles encantados. Daí a importância da terra não apenas como local de preservação da vida, mas também como espaço sagrado.



A ocupação intensa de colonos no século XIX no Vale do Mucuri fez diminuir os espaços de sobrevivência dos povos originários da região em favor da lavoura. Desse modo, esses confrontos internos ficaram ainda mais acirrados à medida que as matas eram ocupadas pela agricultura. Esta, sim, foi a principal responsável pela violência e extermínio indígena. Mas o desaparecimento dos povos chamados Botocudos merece uma narrativa à parte.



Como forte característica da cultura do Vale do Mucuri, pode-se destacar o apagamento em relação a sua formação. A população do nordeste mineiro não faz a menor questão de preservar sua memória e, certamente, sofre problemas econômicos, sociais e culturais graves em função desse perfil.



Em matéria anterior deste blog, escrevi que era de Nanuque onde partia a primeira estrada de rodagem do Brasil. Poucos também são os moradores que têm conhecimento de que foi no município nanuquense que se formou o primeiro núcleo de ocupação da região do Mucuri mineiro, iniciado em 1852.



Ficava às margens do rio Mucuri, bem próximo à cachoeira de Santa Clara, último ponto navegável das embarcações que saiam de São José de Porto Alegre (atualmente o município de Mucuri-BA), sendo que o restante do trajeto seria feito pela estrada Santa Clara.



A estrada de 27 léguas e meia foi construída pela Companhia ligando o porto até Filadélfia (atualmente município de Teófilo Otoni). O povoado não foi o principal ponto colonial, uma vez que nos primeiros anos somente recebeu trabalhadores, boa parte deles escravos, para abrir a estrada.



Era um dos dois pontos de apoio para servir de base para a colonização. O outro viria a ser Filadélfia. São José de Porto Alegre era apenas escala de cargas e viajantes entre o Rio de Janeiro e Santa Clara, estando fora das colônias do Mucuri.



A Companhia do Mucuri montou uma boa estrutura no local, contando já em 1853 com uma serraria, um grande armazém com 80 palmos - 2 de frente e 40 de fundo, uma oficina de ferreiro, uma olaria, um estaleiro e um cais feito de madeira e cal para atracar os vapores, além de diversas casas provisórias para abrigar os trabalhadores.



Essa estrutura permaneceu ao longo da existência da Companhia do Mucuri, acrescendo apenas um novo armazém com a mesma medida do anterior, como também o local preservou sua condição de ponto de apoio para colonização do Mucuri, com um intenso movimento de mercadorias e pessoas.



Findada a Companhia de Ottoni, em 1861, o Mucuri continuou com aumento populacional, crescendo em quase 50% sua população entre 1850 e 1870. Tudo leva a crer que o crescimento econômico também ocorria, mesmo que realizado internamente, tendo o núcleo de Santa Clara participação efetiva nesse processo. Tanto assim que o povoado de Santa Clara passou à categoria de distrito em 1877, elevando-se à Paróquia em 1881.



Porém, com a chegada da Estrada de Ferro Bahia e Minas na região, a partir de 1881, o povoado sofreu um duro golpe, sendo que a sede do distrito passou a ser na estação de Aimorés em 1902. Quase 100 anos depois, uma usina foi instalada no local e o que restou de patrimônio local foi submerso.



Por força da lei, a usina teve de criar no local um sítio arqueológico, composto pelo cemitério (deslocado do seu local original), o armazém e o porto. No entanto, esse sítio atualmente se encontra em condições precárias, uma vez que as peças e os fragmentos têm sido, gradualmente, levados pelo rio Mucuri. O memorial construído no local foi desativado e as peças que foram retiradas, de valor histórico incalculável, estão hoje na UFVJM, campus Diamantina.



Santa Clara foi a porta de entrada para a região do Mucuri. É fundamental que os moradores de Nanuque saibam da importância e do seu legado para a construção do nordeste mineiro.



Que se reconheçam nesse processo e, a partir da identificação cultural, consigam construir caminhos e alternativas para o crescimento local.




Márcio Achtschin Santos, PhD em História pela UFMG e professor da UFVJM.



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